Canto XII
Minotauro - Centauros
Círculo da violência (7) - Rio de sangue
O Minotauro - Ilustração de Gustave Doré |
Descemos por uma rampa formada por um enorme deslizamento de pedras, causado provavelmente por um terremoto ou pela contínua erosão. O barranco derrubado esculpia vários caminhos íngremes e irregulares da beira do precipício até embaixo, permitindo a descida com dificuldade. Quando descíamos por esse caminho tortuoso, encontramos, na beira do barranco destruído, o Minotauro de Creta. O touro ficou tão enfurecido quando nos viu que mordeu suas próprias mãos de raiva. Mas Virgílio logo o afastou, gritando:
- Pensas talvez que estás vendo o duque de Atenas, que no mundo te trouxe a morte? Vai embora, besta, que este só vem aqui para conhecer vossas penas!
Tentando escapar, assustado com aquela voz revestida de autoridade, o Minotauro começou a bufar e espernear, escoiceando como se tivesse sido ferido. O mestre, alerta, gritou:
- Vamos andando! Rápido! Vamos aproveitar para escapar enquanto ele se consome em sua fúria.
Seguimos então pelas pedras, que eu freqüentemente sentia balançarem sob os meus pés. Eu pensava sobre as ruínas quando o mestre falou:
- Imagino que pensas sobre estas ruínas, guardadas por aquela fera semi-humana. Quero que saibas que, quando aqui estive da última vez, esta avalanche ainda não havia acontecido. Se eu bem lembro, ela ocorreu pouco antes da descida Daquele que veio ao inferno para levar os justos para o céu. Na ocasião, todo este abismo tremeu. Não só aqui houve destruição, mas também em outras partes. Mas olha lá para baixo que em breve avistarás o rio de sangue fervendo as almas dos violentos contra seus semelhantes.
De lá do alto vi uma larga fossa, curva como um arco, assim como o mestre me descrevera, que se estendia por todo o plano abaixo. Na base do penhasco apareceu uma ala de centauros, armados com flechas. Quando nos viram, três deles se afastaram do grupo e vieram na nossa direção, armados, com as flechas esticadas, prontas para atirar. Um deles então gritou:
Centauros aguardante Dante e Virgílio à margem do Rio de Sangue - Ilustração de Paul Gustave Doré |
- Vocês aí! O que querem? Que tortura procuram? Falem logo ou eu atiro!
- Nossa resposta daremos somente a Quirón, teu chefe! - gritou o mestre de volta. - Só com ele falaremos pois tu estás demasiado nervoso. - Depois ele voltou-se para mim e disse - Aquele ali é Nesso, que morreu pela bela Dejanira, e fez do seu sangue sua própria vingança. O do meio, que contempla seu peito, é o grande Quirón, que educou Aquiles; o último é Fólo, aquele que nos ameaçou cheio de ira.
Quando estávamos diante dos centauros, ouvimos Quirón falar aos outros dois:
- Vocês perceberam que aquele que está atrás move tudo o que toca? Isto não é o que fazem normalmente os pés de um morto!
O mestre, que já estava diante do centauro e ouvira o final da conversa logo lhe esclareceu:
- Ele está, de fato, vivo, e eu fui designado para guiá-lo por este caminho. Ele faz esta viagem por necessidade e não por prazer. Ele não é ladrão nem eu alma criminosa. - e pediu - Dá-me para nos guiar um do teu povo, para que nos leve à passagem onde o rio fica raso e possa levar este nas costas, pois ele não é espírito que voa.
Centauros armados de flechas impedem que as almas saiam o Rio de Sangue - Ilustração de Paul Gustave Doré |
Quirón, então, voltou-se para Nesso e ordenou-lhe que nos mostrasse o caminho. Partimos com a fiel escolta, margeando o rio de sangue, onde almas ferviam e gritavam de dor. Lá eu vi almas submersas até os olhos.
- Esses que tu vês mergulhados até os olhos - explicou o centauro -, são os tiranos que tiraram o sangue e os bens de suas vítimas. Aqui choram por seus feitos desumanos Alexandre e Dionísio, que fez a Sicília sofrer durante anos. Aquele de cabelos negros é Azzolino e o outro, louro, é Obizzo d'Este.
Pouco adiante, parou outra vez o centauro, e mostrou-nos alguns que ficavam submersos no sangue até a garganta.
- Eis aquele que assassinou, durante a missa, aquele outro cujo coração ainda sangra sobre o Tâmisa - indicou Nesso.
Mais adiante, eu mesmo pude reconhecer alguns dos réus cujo peito já emergia. À medida em que caminhávamos o nível do sangue ia baixando até que enfim só ardia a sola dos pés. Lá finalmente encontramos um trecho raso por onde podíamos atravessar.
- Assim como vês o rio fervente aqui, deste lado, ficando cada vez mais raso - disse o centauro -, do outro lado ele se torna cada vez mais fundo, até chegar ao ponto de maior profundidade que é onde sofrem os tiranos. É lá que a divina justiça atinge Átila, que foi um flagelo na terra, e Pirro e Sexto; e para sempre espreme as lágrimas que o sangue escaldante produz de Rinier da Cornetto e Rinier Pazzo, que transformaram as estradas em campo de guerra.
Chegando a outra margem, descemos da garupa de Nesso. Ele então, atravessou o rio novamente e se foi.
No Canto XIII - veremos a história das harpias e a selva dos suicidas.
Vicente Almeida
30/01/2014
É...
ResponderExcluirO leitor vem percebendo que os personagens retratados nas gravuras não possuem sombras? Isto se deve ao fato da alma não possuir corpo denso, material, (segundo o espiritismo seu corpo é imaterial) apesar de sentir todas as sensações de sofrimento. Concluímos assim que Dante possuía a intuição ou conhecimento deste fato.
O Minotauro: Monstro mitológico com corpo de homem e cabeça de touro. Nasceu da recusa do rei Minós em sacrificar um touro enviado por Netuno, o que motivou o deus a fazer com que a esposa de Minós se apaixonasse pelo touro e com ele tivesse um filho, que foi o Minotauro. Depois do seu nascimento, o Minotauro foi aprisionado em um labirinto criado por Dédalo. O labirinto era tão complexo que ninguém jamais conseguira escapar dele e, perdido, sempre acabava devorado pelo Minotauro. O herói grego Teseu entrou no labirinto com um carretel de linha oferecido por Ariadne, filha de Minós, conseguiu matar o Minotauro e escapar com vida.
O rio de sangue fervente que tortura os pecadores que foram violentos contra os seus semelhantes, é o rio Flegetonte. Na mitologia grega é um rio de fogo. Dante só revela o nome deste rio de sangue mais adiante.
Centauros: Monstros mitológicos que tinham o corpo de cavalo da cintura para baixo e de homem da cintura para cima. Os centauros se destacavam por sua natureza selvagem e violenta. A única exceção era o centauro Quirón.
Assim como o Minotauro e os centauros, meio animal e meio humano, os pecadores violentos vivem mergulhados no rio de sangue. Quanto mais grave o crime, maior a parte imersa. Os assaltantes, dentro do rio, são indistinguíveis dos centauros, pois têm apenas o peito de fora. São punidos por terem praticado violência contra os bens de suas vítimas. Os homicidas só mantém fora a cabeça. Tiraram a vida de suas vítimas. Os tiranos só mantém acima da superfície suas sobrancelhas. Eles atentaram contra a vida e contra os bens de suas vítimas.
Guy de Montfort: Em 1272, durante a missa numa igreja de Viterbo, apunhalou e matou o príncipe Henrique, filho de Ricardo da Cornualha, como forma de vingar a morte de seu pai, vítima do rei Eduardo I. De acordo com Giovanni Villani, o coração de Henrique foi colocado numa taça de ouro sobre uma coluna central da torre de Londres, onde até hoje o sangue pinga sobre o Tâmisa.