OBRIGADO PELA VISITA

O LABORATÓRIO SIDERAL leva até você, somente POSTAGENS de cunho cultural e educativo, que trata do universo; das gentes; das lendas; das religiões e seus mitos, e de forma especial, dos grandes mistérios que envolvem nosso passado. Contém também muitos textos para sua meditação. Tarefa difícil, mas atraente. Neste Blog não há bloqueio para comentários sobre qualquer postagem.

A FOTO ACIMA É A VISÃO QUE TEMOS DO NOSSO INCANSÁVEL PICA PAU, ABUNDANTE AQUI NA MATA DA NOSSA "VILA ENCANTADA".

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A DIVINA COMEDIA - INFERNO - CANTO XII - Por Vicente Almeida

Canto XII

Minotauro - Centauros
Círculo da violência (7) - Rio de sangue

O Minotauro - Ilustração de Gustave Doré 
Descemos por uma rampa formada por um enorme deslizamento de pedras, causado provavelmente por um terremoto ou pela contínua erosão. O barranco derrubado esculpia vários caminhos íngremes e irregulares da beira do precipício até embaixo, permitindo a descida com dificuldade. Quando descíamos por esse caminho tortuoso, encontramos, na beira do barranco destruído, o Minotauro de Creta. O touro ficou tão enfurecido quando nos viu que mordeu suas próprias mãos de raiva. Mas Virgílio logo o afastou, gritando:

- Pensas talvez que estás vendo o duque de Atenas, que no mundo te trouxe a morte? Vai embora, besta, que este só vem aqui para conhecer vossas penas!

Tentando escapar, assustado com aquela voz revestida de autoridade, o Minotauro começou a bufar e espernear, escoiceando como se tivesse sido ferido. O mestre, alerta, gritou:

- Vamos andando! Rápido! Vamos aproveitar para escapar enquanto ele se consome em sua fúria.

Seguimos então pelas pedras, que eu freqüentemente sentia balançarem sob os meus pés. Eu pensava sobre as ruínas quando o mestre falou:

- Imagino que pensas sobre estas ruínas, guardadas por aquela fera semi-humana. Quero que saibas que, quando aqui estive da última vez, esta avalanche ainda não havia acontecido. Se eu bem lembro, ela ocorreu pouco antes da descida Daquele que veio ao inferno para levar os justos para o céu. Na ocasião, todo este abismo tremeu. Não só aqui houve destruição, mas também em outras partes. Mas olha lá para baixo que em breve avistarás o rio de sangue fervendo as almas dos violentos contra seus semelhantes.

De lá do alto vi uma larga fossa, curva como um arco, assim como o mestre me descrevera, que se estendia por todo o plano abaixo. Na base do penhasco apareceu uma ala de centauros, armados com flechas. Quando nos viram, três deles se afastaram do grupo e vieram na nossa direção, armados, com as flechas esticadas, prontas para atirar. Um deles então gritou:
Centauros aguardante Dante e Virgílio à margem do Rio de Sangue - Ilustração de Paul Gustave Doré
- Vocês aí! O que querem? Que tortura procuram? Falem logo ou eu atiro!

- Nossa resposta daremos somente a Quirón, teu chefe! - gritou o mestre de volta. - Só com ele falaremos pois tu estás demasiado nervoso. - Depois ele voltou-se para mim e disse - Aquele ali é Nesso, que morreu pela bela Dejanira, e fez do seu sangue sua própria vingança. O do meio, que contempla seu peito, é o grande Quirón, que educou Aquiles; o último é Fólo, aquele que nos ameaçou cheio de ira.

Quando estávamos diante dos centauros, ouvimos Quirón falar aos outros dois:

- Vocês perceberam que aquele que está atrás move tudo o que toca? Isto não é o que fazem normalmente os pés de um morto!

O mestre, que já estava diante do centauro e ouvira o final da conversa logo lhe esclareceu:

- Ele está, de fato, vivo, e eu fui designado para guiá-lo por este caminho. Ele faz esta viagem por necessidade e não por prazer. Ele não é ladrão nem eu alma criminosa. - e pediu - Dá-me para nos guiar um do teu povo, para que nos leve à passagem onde o rio fica raso e possa levar este nas costas, pois ele não é espírito que voa.

Centauros armados de flechas impedem que as almas saiam o Rio de Sangue - Ilustração de Paul Gustave Doré
Quirón, então, voltou-se para Nesso e ordenou-lhe que nos mostrasse o caminho. Partimos com a fiel escolta, margeando o rio de sangue, onde almas ferviam e gritavam de dor. Lá eu vi almas submersas até os olhos.

- Esses que tu vês mergulhados até os olhos - explicou o centauro -, são os tiranos que tiraram o sangue e os bens de suas vítimas. Aqui choram por seus feitos desumanos Alexandre e Dionísio, que fez a Sicília sofrer durante anos. Aquele de cabelos negros é Azzolino e o outro, louro, é Obizzo d'Este.

Pouco adiante, parou outra vez o centauro, e mostrou-nos alguns que ficavam submersos no sangue até a garganta.

- Eis aquele que assassinou, durante a missa, aquele outro cujo coração ainda sangra sobre o Tâmisa - indicou Nesso.

Mais adiante, eu mesmo pude reconhecer alguns dos réus cujo peito já emergia. À medida em que caminhávamos o nível do sangue ia baixando até que enfim só ardia a sola dos pés. Lá finalmente encontramos um trecho raso por onde podíamos atravessar.

- Assim como vês o rio fervente aqui, deste lado, ficando cada vez mais raso - disse o centauro -, do outro lado ele se torna cada vez mais fundo, até chegar ao ponto de maior profundidade que é onde sofrem os tiranos. É lá que a divina justiça atinge Átila, que foi um flagelo na terra, e Pirro e Sexto; e para sempre espreme as lágrimas que o sangue escaldante produz de Rinier da Cornetto e Rinier Pazzo, que transformaram as estradas em campo de guerra.

Chegando a outra margem, descemos da garupa de Nesso. Ele então, atravessou o rio novamente e se foi.

No Canto XIII - veremos a história das harpias e a selva dos suicidas.
Vicente Almeida
30/01/2014

sábado, 25 de janeiro de 2014

A DIVINA COMEDIA - INFERNO - CANTO XI - Por Vicente Almeida

Canto XI

Túmulo do papa Anastácio Explicação sobre a justiça infernal

Chegamos à beira de um precipício, onde havia um barranco derrubado, cujas pedras formavam uma grande rampa que permitiria nossa descida. Porém, o ar denso e fedorento que emanava do abismo, nos afastou de sua borda, de forma que tivemos que nos proteger sob a cobertura de uma tumba onde estava escrito: "Aqui jaz o papa Anastácio que Fotino desviou do bom caminho".
Túmulo do Papa Anastácio - Ilustração, Gustave Doré
- Nós teremos que atrasar um pouco a nossa descida para que possamos nos acostumar com este ar poluído - disse Virgílio. 

- Devemos então encontrar uma forma de aproveitar esse tempo utilmente - sugeri.

Ele concordou. Iniciou, então, uma detalhada explicação sobre a geografia dos três círculos restantes do inferno.

- Meu filho, depois deste barranco há mais três círculos, concêntricos, organizados em degraus, como os anteriores. - disse ele. - Toda a maldade é alcançada ora através da violência ora através da fraude. Embora ambas sejam odiadas pelo céu, a fraude, por ser uma perversão exclusiva do homem, desagrada mais a Deus. Os fraudulentos, portanto, são colocados nas valas mais profundas do inferno, onde sofrem muito mais.

O próximo círculo (sétimo) que nós encontraremos é o dos violentos, que se divide em três giros, classificados de acordo com a vítima da violência praticada.
Dante e Virgílio chegando ao Círculo da Violência - Quadro de William Adolphe Bouguereau
No primeiro giro estão aqueles que praticaram violência contra o próximo ou contra os bens do próximo. Lá sofrem os assassinos, assaltantes e tiranos em grupos diferentes, de acordo com a gravidade de seus crimes.

No segundo giro estão aqueles que praticaram a violência contra si próprios ou contra seus próprios bens. Os suicidas e gastadores que arruinaram suas próprias vidas (no jogo, por exemplo) se encaixam neste grupo.

No último giro do sétimo círculo estão aqueles que praticaram violência contra Deus. São os que, orgulhosos, não acreditaram nele ou que o atacaram com blasfêmias, através da destruição e desprezo pela sua criação ou pela exploração da criação dos seus filhos através da usura.


Nos dois últimos círculos estão os que praticaram a fraude. Eles premeditaram seus atos e têm plena consciência do mal que causaram. Um homem pode praticar dois tipos de fraude: contra pessoas que confiam nele ou contra estranhos que podem suspeitar dele. Este último tipo só destrói o vínculo do homem com a natureza e é punido no oitavo círculo onde encontraremos hipócritas, aduladores, ladrões, falsários, simoníacos, sedutores e trapaceiros. O primeiro tipo de fraude desfaz não só o vínculo do homem com a natureza, mas também aquele vínculo de confiança estabelecido com outros homens. É, portanto, no menor dos círculos, no nono e último, junto com Dite (Lúcifer), onde são punidos os que traíram aqueles que neles confiaram.

Quando o mestre concluiu seu discurso, perguntei-lhe:

- Por que alguns pecadores cumprem suas penas (mais leves) fora da cidade de Dite e outros cumprem penas mais pesadas dentro da cidade? Por que todos não estão aqui?

- Será que tu já esqueceste o que diz a tua Ética - respondeu -, quando ela explica em detalhes, as três coisas que ao céu mais desagradam: incontinência, malícia e bestialidade? A culpa por ter pecado por causa de incontinência ofende menos a Deus. Se você lembrar com cuidado essa doutrina, entenderá por que aqueles lá de cima foram separados destes maliciosos aqui em baixo.

A explicação foi bastante esclarecedora, mas uma dúvida ainda me atormentava. Eu não entendia como a usura podia ser um pecado de ofensa a Deus. Fiz, então, essa pergunta a Virgílio, que me respondeu:

- Mostra a filosofia, àquele que a compreende, como a Natureza se manifesta a partir do intelecto divino e da sua Arte. Se recorreres a tua Física, encontrarás, bem no início, como a vossa Arte também imita a Natureza. E, como o aprendiz que segue os ensinamentos do seu mestre, a Arte, sendo filha do homem, torna-se quase neta de Deus. Se lembras o que diz o Gênese, logo no início: convém ao homem tirar da Natureza e de sua Arte os meios para a sua sobrevivência. Mas o usurário, ao seguir outros caminhos, agride à Natureza e a Arte, que dela deriva, pois em outra coisa (o dinheiro) põe suas esperanças.

A aurora já se aproximava e o mestre me chamou para continuar a jornada, pois ainda faltava muito antes que chegássemos à descida para o rochedo.

No Canto XII veremos Minotauro - Centauros Círculo da violência (7) - Rio de sangue
Vicente Almeida
25/01/2014

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO X - Por Vicente Almeida

Canto X

Espírito de Farinata - Espírito de Cavalcanti

Passávamos por um caminho secreto, entre a muralha e as sepulturas, quando eu perguntei ao mestre:

- Mestre, estas pessoas aqui enterradas, podemos vê-las? Pergunto isto já que todas as tumbas estão descobertas e ninguém as guarda.

- Elas serão um dia fechadas - respondeu, - quando aqui retornarem com os corpos que deixaram lá no mundo. Este cemitério que aqui vês é para Epicuro e seus seguidores, que acreditavam que a alma morreria junto com o corpo. E quanto à outra questão que me fizeste, ela será em breve respondida, assim como o desejo que escondes de mim será atendido. 
- Ó meu bom guia - falei - eu não escondo meu coração, e se pouco falo, é porque tu mesmo me pedisse isto outras vezes.

- Ó toscano que falais com tamanha honestidade. Por vosso sotaque reconheço que sois de minha cidade natal. Daquela nobre cidade que tratei, talvez, de forma muito dura.

Isto eu ouvi soar de uma das tumbas. Assustado, fui para mais perto do mestre, que disse:
Túmulos dos heréticos dentro da cidade de Dite. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX).

- Volta! O que estás fazendo? Vê Farinata que já se ergueu. Tu o verás em pé, da cintura para cima.

Eu já lhe fixava o olhar, e lá estava ele, imponente, como se nutrisse grande desprezo pelo inferno. Virgílio guiou-me até ele, dizendo:

- Vai, e escolhe tuas palavras com cuidado.

E quando eu estava diante de sua tumba, ele me olhou um pouco, meio desdenhoso e perguntou: 
- Quem foram os vossos ancestrais?

E eu, que só desejava contentá-lo, nada escondi e contei-lhe a verdade. Com isto, ele levantou um pouco as sobrancelhas, mas depois disse: 

- Tão duros na oposição foram a mim, aos meus parentes e ao meu partido, que por duas vezes eu os expulsei. 

- Mas duas vezes eles retornaram - repliquei -, coisa que os vossos partidários nunca conseguiram fazer. 

Enquanto conversávamos, fomos repentinamente interrompidos pelo surgimento de outro vulto, residente naquela mesma tumba, que pude ver apenas do queixo para cima. Creio que estivesse de joelhos. Ele olhou em volta esperando ver alguém. Não encontrando quem ele procurava, falou chorando:

- Se neste cárcere cego vais por grandeza de engenho, onde está meu filho? Por que ele não está contigo?

- Eu não estou só - disse-lhe - aquele que ali espera me guia por estas trevas; aquele por quem, talvez, teu Guido nutria um certo desprezo.

Pelo seu modo de falar e pela sua pena, não foi difícil descobrir de quem se tratava, por isso minha resposta foi tão direta. Mas subitamente ele ficou em pé, e gritou:

- Como? Disseste que ele nutria? Então ele não mais vive? Então a luz doce não mais brilha nos seus olhos?

E quando percebeu que a resposta demorava demais, ele subitamente afundou e não apareceu mais.

Farinata continuava no mesmo lugar onde estávamos quando a conversa fora interrompida. Não se incomodou e sequer olhou para ver o que acontecia. Ele simplesmente continuou de onde tinha parado:

- Se eles não sabem como retornar, isto me dói mais que o fogo deste leito. Retornar não é fácil. Em menos de 50 luas, vós mesmo sabereis como é difícil retornar de um exílio. E como eu espero que vós estareis de volta ao doce mundo, dizei-me, por que vosso partido é tão duro com os meus, nas leis que cria contra eles?

- Certamente, tudo começou com o massacre que tingiu o rio Árbia de vermelho. - respondi, e ele balançou a cabeça.

- Nisso não fui só eu - respondeu - mas certamente eu também não teria ido se não fosse por uma boa causa, mas, quando eles decidiram, unânimes, pela destruição de Florença, fui somente eu que me levantei e ousei defendê-la de rosto aberto.

- Que agora encontre a paz, a vossa descendência - respondi-lhe - mas gostaria que vos me esclarecesses uma coisa. A mim pareceu, se bem entendi, que todos vós têm a capacidade de ver o futuro, mas com o presente, o mesmo não ocorre.

- Os espíritos são capazes de prever o futuro, mas não podem ver o presente. Um dia, quando a porta para o futuro for fechada para sempre, todo o nosso conhecimento será findo.

- Então - pedi, arrependido - dizei àquele que desceu na tumba que o filho dele ainda vive. Foi por não compreender que os espíritos nada sabiam do presente, que eu fiquei em silêncio.

O mestre já me chamava, então, fiz uma última pergunta a Farinata. Perguntei-lhe se havia outros conhecidos que com ele compartilhavam aquela tumba.

- Com mais de mil jazo neste valo. - respondeu - O imperador Frederico está comigo, e também o Cardeal Ottaviano. Sobre os outros, eu me calo.

Depois disso, calou-se e desapareceu. Eu perguntei ao mestre sobre o que esperar das previsões de Farinata e ele me respondeu:

- Guarde em memória tudo o que aqui ouviste contra ti, mas espere até chegares a encontrar Beatriz, pois o olhar dela tudo conhece.

Dobrando agora à esquerda, caminhamos do muro para o meio, onde começava uma vereda que descia para um fosso profundo, de um ar mais espesso e malcheiroso.

Veja no Canto XI - Túmulo do papa Anastácio e a explicação sobre a justiça infernal.
Vicente Almeida
20/01/2014

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO IX - Por Vicente Almeida

Canto IX

Erínias e Medusa Círculo da heresia (6) - Túmulos

O medo me tomou quando vi o semblante do mestre, que se aproximava, e dizia quase para si:

- Precisamos triunfar, se não... Mas não, ora! A ajuda nos fora prometida! Como demora!
Eu vi muito bem como ele mudou de tom ao tentar encobrir o que falara, ou a palavra que não havia pronunciado, por isso mais medo tive ainda, pois a frase que ele deixara incompleta, eu completei com sentido pior.

- Alguma vez já desceu, a estes círculos profundos do inferno, alguém do Limbo? - perguntei-lhe.

- Isto é raro - respondeu-me o mestre -, mas é verdade que eu mesmo já fiz esta viagem e desci até o círculo mais profundo, quando uma vez fui convocado. Não se preocupe, pois conheço bem o caminho.

Virgílio continuou a falar, mas, de repente, minha atenção se voltou para o céu onde vi três Fúrias infernais. Eram figuras femininas, ungidas de sangue e com serpentes ferozes no lugar dos cabelos. O mestre, que já conhecia as escravas de Proserpina, me apontou:

- Olha! São as Erínias ferozes! Aquela é Megera, à esquerda, e aquela que chora à direita é Aleto. Tesífone é a do meio.

Elas gritavam alto e com as unhas rasgavam o peito. Eu fui para junto do poeta, tomado pelo medo.
Medusas na porta de Dite tentando barra a entrada de Dante e Virgílio - Ilustração de Gustave Doré - Sec. XIX
- Venham Medusa, venham! - gritavam - vamos transformá-lo em pedra! Que pena que deixamos Teseu escapar!

- Fecha os olhos e volta-te! - gritou Virgílio - pois se a górgona vier e tu olhares para ela, não haverá mais volta ao mundo! - e com estas palavras ele me virou de costas e, não confiando nas minhas mãos que já estavam sobre os olhos, colocou as dele sobre as minhas e lá as manteve.

De repente, ouvi um grande estrondo e uma ventania tomou conta do ar levantando poeira e fazendo um barulho assustador. Depois, o inferno começou a tremer. Ele então tirou as mãos dos meus olhos e disse:

- Agora vira-te e olha na direção do pântano, onde a bruma é mais espessa.

Olhei e vi mais de mil almas apavoradas no ar, fugindo, saindo do caminho de um ser que vinha, caminhando sobre o Estige, sem molhar os pés. Ele afastava o ar sujo com as mãos, e essa aparentava ser a única coisa que o incomodava. Eu tinha certeza, agora, que ele vinha do céu. Voltei-me para o guia mas ele fez um sinal para que eu permanecesse em silêncio.

O anjo chegou e tocou as portas de Dite com uma pequena vara, fazendo com que elas abrissem sem esforço.
Anjo abrindo o portal da cidade de Dite - Ilustração Gustave Doré - Seculo XIX
- Ó almas mesquinhas - ele começou, sobre as portas da cidade sombria - por que resistis contra aquela vontade que nunca pode ser negada e que, mais de uma vez, só fez aumentar vosso sofrimento?

Depois de falar, voltou pelo mesmo caminho por onde tinha chegado. Nós depois prosseguimos, seguros por suas palavras sagradas, e entramos sem dificuldades pela porta principal.
Túmulos dos heréticos - Ilustração de Gustave Doré - Seculo XIX
dentro da cidade, encontramos um cemitério de tumbas abertas, de onde se ouvia o lamentar de muitas vozes que queimavam em brasa dentro das covas.

- Mestre - perguntei -, que sombras são estas que aqui jazem e que só podemos perceber pelos seus lamentos?

- São os hereges e seus seguidores. - respondeu-me Virgílio - Em cada tumba repousam os réus de uma mesma seita, que são torturados pelo fogo eterno.

Dobramos, então, à direita, e continuamos a caminhar entre a muralha da cidade e as sepulturas.

No Canto X Espíritos de Farinata e Cavalcanti.
Vicente Almeida
15/01/2014

sábado, 11 de janeiro de 2014

JOÃO DE BARRO-2 - Por Valdênia Almeida

O casal, João de Barro e sua companheira concluíram sua casinha em nosso pé de seriguela.

Ficou linda! É um encanto! E que delícia de prazer estão nos proporcionando.

Tivemos oportunidade de tirar novas fotos e fazer mais um pequeno vídeo. Desta vez ele nos brindou fazendo a modelagem da entrada.

O fundo musical do vídeo é orquestrado pelas cigarras. Na matina acordamos sempre com algum cantor matutinos, inclusive as cigarras, mas, o que mais nos encanta é o sabiá.

Com as fotos mais próximas pudemos ver detalhes da entrada em formato de meia lua, reto a esquerda e redondo a direita. É um misto de argila, gravetos e folhas. Você também poderá ver se for observador(a). Ainda não vi na internet, imagens tão detalhadas como estas.









Texto e Imagens: Valdênia Almeida
11/01/2014

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A DIVINA COMEDIA - INFERNO - CANTO VIII - Por Vicente Almeida

Canto VIII

Flégias - Demônios - A cidade de Dite

Eu devo explicar que, bem antes de chegarmos ao pé daquela torre, já observávamos as duas chamas que havia no seu cume. Na escuridão do rio, outra luz tão distante que quase não se via, respondia com um sinal. Voltei-me ao mar de toda sabedoria, e perguntei:
- Que sinais são estes? E aquela outra chama, o que ela responde? Quem é que as provoca?

- Sobre esta lama imunda em breve poderás perceber o que se espera - respondeu Virgílio.
Dante e Virgílio atravessando o rio Estige com o barqueiro Flégias - Ao fundo a cidade de Dite - Pintura de Eugene Delacroix 1822.
Mal ele terminara de falar, da escuridão surgiu um barquinho pilotado por um barqueiro solitário, cortando a água em nossa direção.

- Chegaste, alma culposa! - gritou ele ao ancorar.

- Flégias, Flégias, desta vez tu gritas em vão - respondeu o meu senhor, - pois só vais nos levar à outra margem e nada mais. Contendo a sua ira, o barqueiro concordou. Meu guia calmamente embarcou e depois eu entrei, e só então o barco pareceu carregado.
Flégias de pé aguardando o embarque de Dante e Virgílio para a travessia do mar de lama - Ilustração de Gustave Doré Século XIX
No meio do caminho, um ser lamacento surgiu das águas e me chamou, perguntando:

- Quem és tu que vens antes do tempo?

- Venho - respondi, - mas não demoro, mas quem és tu tão revoltoso?

- Eu sou um dos que chora, como podes ver.

- Com choro e com luto, espírito maldito, que assim permaneças, pois eu te conheço, mesmo tão sujo!

Depois que eu lhe respondi, ele irritou-se e saltou sobre o barco, tentando me agarrar. Virgílio, porém, foi mais rápido e conseguiu lançá-lo de volta ao rio.

- No mundo este homem foi pessoa orgulhosa - disse o mestre - e nada de bom resta em sua memória. Por isto é que sua alma está aqui tão furiosa. Vês, quantos lá em cima se julgam grandes reis e aqui estarão como porcos na lama?

- Mestre - falei, - muito me agradaria também vê-lo aqui afundado na lama antes que saíssemos deste lago.
Alma de Fillippo Argenti tentando subir no barco para agredir Dante - Ilustração de Gustave Doré - Século XIX
 - Antes que apareça a outra costa - respondeu o mestre - teu desejo será satisfeito.

Pouco depois, ouvi seus companheiros o massacrarem. Eles gritavam: "Vamos pegar Filippo Argenti!".

Deleitei-me ao ver aquele florentino arrogante morder a si mesmo com os dentes de raiva.

E lá o deixei, e disso não falo mais. Comecei, então, a ouvir vozes dolorosas, que me impeliram a olhar adiante.

- E agora meu filho - chamou-me o mestre - nos aproximamos da cidade que se chama Dite, com seus tristes cidadãos e grande companhia.

- Mestre, - observei - já posso ver as suas mesquitas logo acima do vale infernal! Elas brilham, vermelhas como ferro em brasa.

- É o fogo eterno que arde no seu interior que faz esse brilho rubro se espalhar pelo baixo inferno. - completou Virgílio.

Entramos no fosso que cerca a cidade e Flégias deu uma grande volta em torno dela, onde pude observar seus muros que pareciam ser de ferro. Quando chegamos diante da entrada da cidade, Flégias gritou alto com toda a força:

- Saiam! Saiam logo! É aqui a entrada. 

Descendo do barco, fomos recepcionados por um grupo de demônios. Eles chegaram e perguntaram:

- Quem é esse que, sem morte, anda pelo reino da morta gente?

O sábio mestre veio em meu auxílio. Dirigindo-se aos demônios, fez sinais indicando que gostaria de falar com eles secretamente. Responderam os diabos, disfarçando sua arrogância:

- Tudo bem, mas vem tu sozinho. E esse outro aí, que achava que podia andar como rei nesta terra, que prove que pode voltar sozinho se souber, pois tu que o guiaste até aqui vais ficar conosco!

Apavorei-me diante dessas palavras e temi não mais poder voltar a ver o mundo outra vez.

- Caro meu guia - chorei, em desespero -, que tantas vezes me deste segurança, não me deixes, por favor! Se não pudermos prosseguir nesta jornada, que voltemos já sem demora!

Mas ele, confiante, me respondeu:

- Não temas, porque o nosso passo, ninguém pode impedir. Mas espera aqui e descansa. Não deixes de ter esperança, pois podes ter certeza que não te deixarei sozinho neste mundo baixo.

Ele falou e foi encontrar-se com os diabos, e eu fiquei só a observar de longe. Não ouvi a conversa. Só vi a briga de longe e a porta da cidade se fechar diante de Virgílio, que voltou para mim cabisbaixo, em um passo lento.

- Olha só quem me nega a cidade da dor! - disse, triste - Mas não temas, pois ainda vencerei esta prova. A esta hora já deve estar no portal deste inferno alguém por quem esta entrada será aberta.

No Canto IX, veremos o Círculo 6 - da heresia
Vicente Almeida
10/01/2014

domingo, 5 de janeiro de 2014

JOÃO DE BARRO - Por Valdênia Almeida

O João e sua companheira formam um casal maravilhoso e serão meus vizinhos por algum tempo.

Eles resolveram construir seu lar aqui bem no meu quintal, a uns vinte metros da minha casa, onde há algum tempo plantei um pé de seriguela e outras árvores frutíferas. Hoje cedo, como de costume, levantei para aguar meu jardim onde cultivo de tudo um pouco; verduras, roseiras, e uma variedade de ervas medicinais.

Em seguida desço para o quintal onde em cada temporada colho as frutas respectivas; Cajás, goiabas, mangas, abacates, caju, acerola, laranja, bananas, coco da paia, etc.

Mas hoje foi diferente, fui colher seriguelas e meus olhos brilharam de prazer, não pelo fruto vermelho e saboroso, mas, por visualizar um casal de João de Barro construindo seu lar no dorso da árvore, sim ela é selada, isto é; curvada como você verá. Quando vi a casinha, a construção já estava bem avançada. 

A casinha deles é uma lindeza. Fiquei muito feliz por tê-los como vizinhos e tenho certeza que só me darão prazer, além de ser para mim uma grande honra ter vizinhos tão ilustres.

Apesar do tamanho, a construção se processa rápida e logo logo estará ocupada pela família. Essa parte escura que você verá nas fotos foi construída somente esta manhã.

É com muito prazer que vou dividir com você a minha alegria. Sim, sinto-me privilegiada pois, só conhecia casinhas de joão de Barro, em fotos ou em alguma exposição.

Eles não hesitarem em pousar para nós dentro da casinha em construção.

No Brasil o João de Barro é também conhecido como forneiro por construir sua casinha em forma de forno. É também a ave simbolo da Argentina, onde recebe o nome de Hornero.

Primeiro Vídeo. O áudio deste vídeo leva até você o som das cigarras em franca cantoria.


Primeira fase: Nesta manhã eles trabalharam bastante. Observamos que enquanto um ia em busca de argila, o outro ficava modelando a entrada.










Segunda fase: Quando ambos saíram pude me aproximar mais e fotografar melhor.



Terceira fase: No período da tarde eles quase concluíram a entrada. Veja como a abertura já diminuiu. A parte escura é a mais recente da bela construção é a argila ainda molhada. 

Texto e imagens: Maria Valdênia Lima de Almeida
05/01/2014

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO VII - Por Vicente Almeida

CANTO VII

Pluto - Círculo da avareza (4) Círculo da ira (5) - Rio Estige

- Pape Satàn pape Satàn aleppe! - começava Pluto com sua voz rouca. Virgílio virou-se para mim e disse, com segurança:

- Não tenhas medo dele. Lembra-te que, por mais que ele tenha poder, ele não pode impedir nossa descida. - Depois, dirigiu-se a Pluto e gritou:

- Cala a boca CÃO maldito! Consome em ti mesmo tua raiva. Nossa descida não é sem propósito, pois é algo que se quer nas alturas!

Diante daquela voz revestida de autoridade, Pluto mal pôde reagir. Logo fraquejou e diante de nós, tombou.
Pluto - o cão danado - Ilustração de Gustave Doré Século XIX
Aproveitamos, então, para descer pela beira que contorna o quarto círculo. Lá vi mais almas que em todos os círculos precedentes. Estavam organizadas em dois grupos que se enfrentavam, com os peitos nus, rolando grandes sacos de dinheiro em sentidos contrários até colidirem uns com os outros. Após o choque um grupo gritava "por que poupas?". O outro gritava "por que gastas?". Depois do choque seguiam em sentido contrário até se encontrarem novamente, do outro lado do círculo. E assim continuavam por toda a eternidade.
Almas dos avarentos rolando sacos de dinheiro morro acima - Ilustração de Gustave Doré
Com o coração pungido de desgosto, perguntei:

- Mestre, quem são essas pessoas? Eram padres essas almas que vejo aqui do lado, com corte de cabelos em cercilha?

- Todos - respondeu o mestre -, em sua vida terrena, não foram judiciosos com seus gastos. Isto declaram, quando se encontram nas suas culpas opostas. Esses de coroa pelada são clérigos, papas e cardeais, nos quais a avareza se manifesta mais facilmente.

- Mestre - falei - em um grupo como este certamente serei capaz de reconhecer alguém.

- É inútil a tua esperança. - respondeu o mestre - Sua vida sem conhecimento os tornou imundos e agora é mais difícil reconhecê-los. Eternamente se enfrentarão, aqueles de punho cerrado e aqueles outros sem cabelos. Mal dar e mal guardar os tirou do mundo, colocando-os nessa rinha. Mas não vale a pena mais falar deles. Vês, filho, como de nada adianta os homens brigarem pela fortuna? Pois todo o ouro que está ou já esteve sob a lua não comprará um minuto sequer de descanso para essas almas cansadas.

- Mestre meu - disse eu - me dize o que é a Fortuna de que agora falas? Como é que ela é, essa que guarda todas as riquezas do mundo em suas mãos?

- Aquele cujo saber tudo transcende - explicou-me o mestre - fez os céus e lhes deu quem os conduz, e cada esfera que brilha reflete sobre as outras, distribuindo igualmente a luz. Do mesmo modo, para as riquezas mundanas designou uma ministra para que ela cuidasse de permutar, de tempos em tempos, os bens profanos entre as nações e famílias, livres do alcance da cobiça humana. Então, enquanto uma nação impera, outra enfraquece, de acordo com o arbítrio dela, que é oculto como uma serpente na relva. Vosso saber não tem poder sobre sua lei, pois ela prevê, julga e rege sobre seu reino. E ela nunca pára. É amaldiçoada até por quem deveria louvá-la, mas como é beata, ela não os ouve, e continua a girar a sua roda eternamente.

Não demoramos mais naquele lugar, pois o dia já chegava ao fim, e nosso tempo era curto. 

Descemos então para o quinto círculo por uma vereda escura onde nascia uma fonte de água preta e fervente. Atravessamos o riacho e acompanhamos suas encostas através de um caminho estreito, até que chegamos finalmente às margens de um vasto pântano chamado Estige, onde o riacho desaguava.

Apesar da escuridão, pude ver, naquela água escura, vultos nus cobertos de lama remexendo-se, com feições iradas e rostos desfigurados. Eles esmurravam-se com as mãos, batiam cabeças, se chutavam e arrancavam as peles uns dos outros com os dentes.

- Filho - disse o bom mestre -, aqui tu vês as almas dos vencidos pela ira, e vou dizer-te ainda, se me crês, que embaixo d'água há almas que suspiram, fazendo-a borbulhar. São aqueles vencidos pelo rancor, a ira contida e passiva, porém igualmente destrutiva. Eles gorgolam o lodo e formam as bolhas que pipocam sobre esta lama fétida.
Dante e Virgílio na orla do Rio Estige - Ilustração de Gustave Doré
Depois demos uma grande volta, seguindo entre o rio e a orla seca, sempre observando aqueles que engoliam a lama, até chegarmos ao pé de uma alta torre, no final.
Vicente Almeida
05/01/2014