OBRIGADO PELA VISITA

O LABORATÓRIO SIDERAL leva até você, somente POSTAGENS de cunho cultural e educativo, que trata do universo; das gentes; das lendas; das religiões e seus mitos, e de forma especial, dos grandes mistérios que envolvem nosso passado. Contém também muitos textos para sua meditação. Tarefa difícil, mas atraente. Neste Blog não há bloqueio para comentários sobre qualquer postagem.

A FOTO ACIMA É A VISÃO QUE TEMOS DO NOSSO INCANSÁVEL PICA PAU, ABUNDANTE AQUI NA MATA DA NOSSA "VILA ENCANTADA".

domingo, 30 de março de 2014

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO XIX - Por Vicente Almeida

Vala dos simoníacos Espírito do papa Nicolau III.

Ó Simão mago, e todos aqueles que te seguiram, profanando e vendendo as coisas de Deus pelo preço de ouro e prata! Em vossa homenagem devo soar a trombeta, pois é aqui, nesta terceira vala, onde estais!

estávamos no meio da ponte sobre a terceira vala. De lá eu vi nas encostas e nos fundos da pedra gelada, redondos furos escavados de igual tamanho.

Da boca dos furos pendiam os pés de um penitente, cujo corpo estava enterrado nos buracos com a cabeça para baixo. Nas plantas dos pés ardiam chamas, que escorriam por seus calcanhares.

Os sofredores, desesperados, agitavam seus pés freneticamente, na vã esperança de livrarem-se das dores causadas pelas chamas.
Gravura de Blake Dante Hell
  - Mestre - perguntei -, quem é aquele que se debate mais que os outros, e que é torturado por uma chama mais vermelha?

- Se quiseres- respondeu - eu te levarei até ele, e lá poderás perguntar quem ele é e de onde veio.

Concordei e ele me ajudou na descida difícil, me segurando enquanto passávamos pelas beiras esburacadas. Só quando eu estava diante do pecador foi que ele me soltou.

- Ó tu, alma desgraçada que estás plantada, fala se puderes! - fui dizendo, enquanto me abaixava diante dele como um frade durante uma confissão.

- Já estás aí plantado? Já estás aí plantado, Bonifácio? Por muitos anos enganou-me o escrito! - falou a alma pensando que eu fosse outro. Fiquei imóvel sem saber como responder.

- Rápido, dize a ele que não és ele, que não és aquele que ele pensa que és - ordenou Virgílio, e eu respondi ao espírito da mesma forma como ele me pediu.
Dante conversa com o papa Nicolau III - Ilustração de Paul Gustave Doré - Século XIX
- Bem, então o que querem de mim? - perguntou, suspirando e torcendo os pés - Se querem saber quem eu sou, saibam que um dia fui papa, mas na verdade eu era filho da Ursa.

Por tanto procurar embolsar ouro naquele mundo, aqui eu mesmo fui embolsado. Neste buraco, abaixo da minha cabeça, estão empilhados todos aqueles que me precederam, pecando por tráfico de coisas divinas, espremidos nas fissuras da pedra. Eu aguardo a chegada daquele que eu pensava que tu eras, que ocupará o lugar que hoje ocupo, me empurrando mais para baixo neste buraco. Os pés dele arderão em chamas até que ele seja também substituído por um pastor sem lei, que virá do ocidente, e que pelo rei da França será protegido. Ele cobrirá a Bonifácio e a mim.

Conversando com Dante, o papa Nicolau III o confunde com o papa Bonifácio VIII, que é aguardado naquela parte do Inferno.

Não resisti em respondê-lo com suas próprias palavras:

- Bem, dize-me quanto foi que Pedro teve que pagar ao nosso Senhor antes que Ele lhe desse as chaves de sua Igreja? Estejas certo que ele pediu nada mais que "Me acompanha." Então fica tu aí pois essa tua punição é merecida. Tua avareza traz tristeza ao mundo, esmagando os justos, premiando os depravados. Criastes para vós, pastores pervertidos, um deus de ouro e prata! Pouca diferença há entre vós e os idólatras, exceto que eles só adoram a um, e vós adorais centenas!

E enquanto eu falava essas palavras, aqueles pés escoiceavam mais ainda, talvez por ira ou mordidas de consciência. O mestre então me levou de volta à ribanceira e seguimos para a quarta vala.
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No Canto XX você conhecerá a quarta vala que é a vala dos adivinhos.
Vicente Almeida
30/03/2014


terça-feira, 25 de março de 2014

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO XVIII - Por Vicente Almeida

Malebolge - Círculo da fraude (8º) - Valas dos sedutores, e aduladores

Existe um lugar no inferno chamado Malebolge, e é feito de pedra de cor ferrenha, como as paredes da encosta que o rodeia. No centro desse campo maligno há um poço muito largo e profundo, que descreverei quando lá chegarmos.

A faixa que resta, entre o poço e a encosta, é redonda e se divide em dez valas, concêntricas, cada uma mais baixa que a anterior. Aqui há pontes que, desde o penhasco, atravessam os fossos de uma beira à outra, até a ultima que beira o poço central.

Era nesse lugar que nós estávamos, quando do dorso de Gerión fomos despejados. De lá seguiu o poeta à esquerda e eu o acompanhei. À direita já pude ver as almas sofredoras e as novas penas, o novo tormento e os novos torturadores, de que a primeira vala era repleta.
Ilustração de Paul Gustave Doré
Duas fileiras de almas nuas andavam em fila no fundo. As do nosso lado seguiam com seus rostos virados para nós. As outras, seguiam no sentido oposto. Nos dois grupos, diabos chifrudos surravam as almas com prazer, usando duros chicotes para que não parassem. Elas gritavam de dor, tropeçavam, mas não ousavam reduzir o seu passo.

Enquanto eu andava, reconheci um dos açoitados que sofria. Eu olhei e ele baixou o rosto, tentando se esconder até que eu o segui e perguntei:

- Se eu não estou enganado, tu és Caccianemico Venedico. O que foi que te trouxe para este molho ardido?

- Eu não queria responder - disse o espírito -, mas tua voz me faz recordar o mundo antigo. Eu fui aquele que, por dinheiro, entreguei minha própria irmã Ghisolabella ao marquês d'Este. - depois observou - Mas eu não sou o único bolonhês neste fosso! Esta vala está repleta de rufiões!

Naquele instante, um diabo chegou e lhe surrou com o chicote, dizendo:

- Anda rufião, que aqui não tem fêmeas para explorar! Eu voltei a seguir meu mestre até uma ponte de pedra sob a qual havia um vão por onde passavam os açoitados. Lá o mestre me mostrou outros condenados que caminhavam pelo vale em sentido contrário aos rufiões (que antes não víamos o rosto). Eram os sedutores. Eles, assim como os rufiões, eram movidos por chicotadas. Sem que eu pedisse, o mestre me mostrou várias personalidades:

- Olha aquele que vem, imponente, que não solta uma lágrima sequer de dor. É Jasão, condenado por ter seduzido a jovem Ísfile de Lemnos e depois tê-la abandonado. Ele a seduziu e depois a deixou, sozinha, com criança para criar. Tal pecado é punido com esta pena, e assim, também, Medéia tem aqui a sua vingança.
Vala dos sedutores e rufiões - Ilustração de Sandro Botticelli século XV
Tendo atravessado a ponte que unia a primeira beira à segunda, seguimos até a ponte seguinte. Antes de subir, já ouvíamos as respirações ofegantes das almas que sofriam na segunda vala, respirando um vapor nojoso que emanava de um rio de podres fezes ácidas. Tão funda era esta vala que só foi possível ver seu fundo quando chegamos à parte mais elevada e central da ponte. Lá vimos gente imersa no esgoto asqueroso.     
Ilustração de Paul Gustave Doré
Não era fácil reconhecer os condenados, todos cobertos de merda. Fiquei a olhar lá para o fundo, vendo se reconhecia alguém, quando uma das almas gritou:

- Por que olhas mais para mim que para as outras almas sujas desta vala?

- Porque - respondi -, se a memória não me engana, já te vi antes com teus cabelos enxutos. Tu és Alessio Interminei de Luca. É por isto que te olho mais que os outros.

- Estou aqui por que fui um adulador - disse ele -, e enganei pessoas com minha língua perversa.

Depois que Alessio terminou de falar, meu guia me chamou a atenção:    
Dante e Virgílio descendo o barranco - Ilustração de Paul Gustave Doré
- Vês aquela rameira suja que se coça de modo asqueroso? Ela é a prostituta Akaísia. Mas agora vamos, pois já vimos o suficiente.
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No Canto XIX veremos a Vala dos simoníacos Espírito do papa Nicolau III
Vicente Almeida
25/03/2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO XVII - Por Vicente Almeida

Gerión - Espíritos de famílias da alta nobreza.

- Eis a fera com sua cauda aguda, que atravessa os montes e rompe os muros e armas! Eis aquela que em todo o mundo transpira e fede! - começou a me falar o mestre, enquanto acenava para a fera sinalizando que ela viesse à beira da pedra onde estávamos.

E ela subiu com a cabeça e o busto, mas sobre a beira não descansou sua cauda. A sua face era a face de um homem justo, tão benignos mostravam-se seus traços, e de serpente era o resto de seu corpo. As suas garras e o seu tronco eram peludas. Tinha o dorso e peito ornados com pinturas de argolas e laços. Toda a sua cauda no vazio vibrava, torcendo sua forquilha venenosa, armada na ponta como um escorpião.

- Vamos! - chamou o mestre - Vamos até a fera que acolá se assenta!

Descemos pelo lado direito do dique e demos dez passos pela sua beira inferior, evitando as areias quentes.

Quando estávamos ao lado de Gerión, eu percebi, um pouco mais distante, algumas pessoas acocoradas na areia junto à beira do precipício.

- Para que possas ter um conhecimento completo dos tormentos deste círculo, vai tu falar com aquele grupo enquanto eu convenço esta fera a nos transportar. - sugeriu Virgílio.

E eu fui, sozinho, margeando a aresta do precipício, até onde estavam sentadas aquelas almas tristes.

Dos seus olhos escapava-lhes a dor. Com as mãos, defendiam-se como podiam do solo em brasa e do ardente calor. Examinei aqueles rostos, mas nenhum reconheci. Notei que todas tinham uma bolsa pendurada no pescoço, cada uma de uma cor, com um brasão nelas gravado. Uma tinha algo azul com rosto de leão impresso numa bolsa amarela. Outra ostentava uma bolsa vermelha com uma pata branca desenhada. Aquela alma que tinha uma porca azul pintada sobre uma bolsa branca me perguntou:

- O que fazes nesta fossa? Vai embora! E como estás vivo, saibas que o meu vizinho Vitaliano sentará aqui à minha esquerda. Que venha o cavaleiro soberano, que três bodes terá na sua bolsa!

Falou e depois fez caretas terríveis, puxando a língua por cima do nariz. Eu, assustado, voltei para o lugar onde o mestre já me aguardava. Quando cheguei, Virgílio já estava montado sobre a garupa da fera.

- Ora, tenha coragem! - disse, tranqüilo - Monta aqui na minha frente, pois atrás ficarei eu para evitar que sua cauda possa fazer-lhe mal.

Subi então naquele bicho horrendo, tomado de medo e horror. O mestre me segurou firme e então gritou:

- Gerión, move-te afora e desce devagar. Pensa na carga que carregas!

E assim, o monstro deu ré e virou-se na direção do abismo. Onde estava o peito agora estava sua cauda, que esticou como uma enguia, e com suas garras puxou o ar escuro, mergulhando na escuridão. Eu estava aterrorizado. Nunca sentira medo igual. Olhei para baixo e nada vi. Só havia escuridão. Gerión se movia lento, nadando, descendo em espiral. E esse movimento eu só pude perceber por causa da brisa que soprava no meu rosto.
Dante e Virgílio na garupa de Gerion descendo para o oitova círculo. Ilustração de  Giovanni Stradano - Século XVI
Pouco depois comecei a ouvir os lamentos que já dominavam o ar. Debrucei-me para olhar para baixo e vi o fogo. Assustado, logo me aprumei e segurei firme. Depois de cem voltas Gerión finalmente pousou, nos deixando no fundo, ao pé do grande penhasco. Assim que descemos de sua garupa ele sumiu, esvaindo-se na escuridão.
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No Canto XVIII veremos o 8º Círculo - Malebolge, Círculo da fraude, Valas dos sedutores e aduladores.
Vicente Almeida
20/03/2014

sábado, 15 de março de 2014

A DIVINA COMÉDIA - FLORENÇA - ITÁLIA - Por Vicente Almeida

Para compreender melhor a Divina Comédia vamos falar um pouco sobre Florença, de onde Dante retira um manancial de informações sobre a vida da cidade e de seus habitantes.

Berço do Renascimento italiano, Florença é uma das cidades mais belas do mundo. Muitos gênios, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Dante Alighieri, Filippo Brunelleschi e Nicolau Maquiavel, contribuíram para sua grandeza.

Florença (Firenze, em italiano) é a capital da província homônima e da região italiana da Toscana. Está situada a 230 km ao noroeste de Roma e ocupa uma área em torno de 105 km2. Foi fundada por motivos comerciais e militares e o objetivo era controlar os únicos pontos navegáveis do rio Arno e os montes Apeninos, nas rotas de norte a sul da península itálica. Fiel a sua tradição, Florença conserva lugar de destaque na arte e na cultura italianas.

A cidade data do século I a.C. e foi edificada junto às ruínas de uma cidade etrusca. Serviu inicialmente de alojamento para uma guarnição militar romana e, quatro séculos depois, transformou-se num importante centro comercial, dada sua localização no ponto nevrálgico das comunicações terrestres da península itálica.

Após um longo período de letargia, em que esteve sucessivamente sob domínio de ostrogodos, bizantinos e lombardos, a cidade renasceu no século IX, quando se integrou ao império de Carlos Magno. Com as tensões entre o papado e o Sacro Império Romano-Germânico, ao qual passou a pertencer desde 962, junto com a Toscana, Florença teve governo autônomo desde fins do século XI.

Durante os séculos XIII e XIV, a cidade foi agitada por lutas contínuas entre os guelfos, partidários do poder papal, e os gibelinos, vinculados ao império alemão. Mesmo assim, essa foi uma época de esplendor econômico e cultural, com escritores que se tornaram imortais, como Dante, Petrarca e Boccaccio, e pintores como Giotto.

No princípio do século XV, uma família de banqueiros, os Medici, tomou o poder, que conservaria até 1737, data em que Florença foi anexada pelo duque de Lorena. Os Medici criaram um poderoso estado toscano e, com seu mecenato, imprimiram grande impulso à cultura renascentista em Florença.

No século XVIII teve início uma fase de decadência artística e social, motivada pelas guerras e pela instabilidade política. Grande parte da herança cultural da cidade perdeu-se pelo desleixo ou pelo uso indevido de seus edifícios, situação que se agravou com alguns acidentes naturais, como inundações provocadas pelas cheias do rio Arno. No século XX, porém, muitas medidas foram tomadas para proteger o acervo cultural e artístico de Florença.

Embora nas últimas décadas do século XX a cidade tenha experimentado acentuado progresso industrial, suas principais fontes de renda são o turismo e o artesanato. A atividade artesanal florentina produz objetos de vidro e cerâmica, reproduções de obras de arte e trabalhos em metais preciosos, cujos pontos de venda se estendem pela cidade inteira. Predominam os mercados ao ar livre, como o de ourivesaria do Pontevecchio.

Florença tem muitos museus, dos quais o mais importante é a Galleria Degli Uffizi. A cidade conta também com a Biblioteca Nacional Central, onde é possível encontrar exemplares de todos os livros publicados na Itália desde 1870. A vida universitária é muito intensa. Além dos estabelecimentos de ensino italianos, funcionam universidades de outros países, como as de Grenoble e Harvard, dedicadas ao estudo do Renascimento italiano.

O centro da cidade pouco mudou desde sua época de máximo esplendor, ou seja, o período situado entre os séculos XIII e XV. Conserva-se o traçado das antigas ruas romanas, que cruzavam o núcleo urbano. Desde o século XIII, o centro político é a praça da Signoria, antiga sede dos governos de Florença. A praça da Repubblica e arredores, com muitos cafés, livrarias e lojas de antiguidades, formam o centro comercial.

A arquitetura religiosa florentina é um dos principais centros de interesse da cidade. O edifício mais antigo é o batistério de San Giovanni, em estilo romano, com planta octogonal, decorado exteriormente em mármore verde.

A catedral de Santa Maria del Fiore, no estilo gótico com influências toscanas, obra de Arnolfo di Cambio, foi iniciada em 1296 e finalizada em 1436, quando se ergueu a cúpula projetada por Filippo Brunelleschi. Outros monumentos religiosos de particular interesse são a basílica de San Lorenzo, a igreja do Santo Spirito, a de Santa Croce etc.

A cidade conta mais de meia centena de palácios, dos quais o maior e historicamente mais importante é o palácio Pitti, que foi residência dos Medici e depois dos Lorena. Esse palácio foi projetado por Brunelleschi, a quem se deve igualmente a fachada do Hospital dos Inocentes, tida como a primeira obra arquitetônica do Renascimento.

Outros palácios famosos são o da Signoria, o Medici-Riccardi e o Strozzi. Entre os belíssimos jardins de Florença destaca-se o de Boboli, pela extensão e antiguidade.

Créditos deste texto para Helder da Rocha.
Vicente Almeida
15/03/2014 

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO XVI - Por Vicenre Almeida

Espíritos de políticos florentinos

Chegávamos onde já se ouvia o ruído da água que caía no outro círculo, com um som semelhante ao zumbido que se ouve ao aproximar-se de uma colmeia, quando chegaram até nós três sombras, correndo, se separando de seu grupo que nos passava.
Guido guerra, Tegghiaio Aldobrandi e Jacopo Rusticucci diante de Dante e Virgílio - Ilustração de Giovanni Stradano - Século XVI
- Pára, tu, de vestes conhecidas! - gritavam - Pára pois pareces ser de nossa terra perversa (Florença).

Ó tristes almas sofredoras! Quantas vi com seus membros repletos de feridas novas e antigas, queimaduras que ainda me doem só de pensar. Os seus gritos chamaram a atenção do mestre, que voltou-se para mim e disse:

- Espera! Com estas almas te rogo cortesia.

Paramos. Os três espíritos, que não podiam parar, logo formaram uma roda e começaram a andar em um círculo. Enquanto circulavam, cada um mantinha o rosto virado na minha direção, de forma que enquanto o pescoço virava para um lado, os pés seguiam para o outro.

- Se a miséria deste solo estéril - falou um deles - e nossas queimaduras, bolhas e peles descascadas te causam repugnância, deixa que a nossa fama te anime a dizer quem és tu, que vivo caminhas por este inferno. Este na minha frente, embora corra nu com o corpo esfolado, foi figura de alto grau no mundo. Seu nome era Guido Guerra e muito ele cumpriu com seus conselhos e com a espada. Este outro, que está atrás de mim, é Tegghiaio Aldobrandi, cuja voz o mundo faria bem em ouvir. E eu, sou Jacopo Rusticucci.

Eu fiquei tão comovido com o sofrimento daqueles espíritos que, se não fosse a chuva de brasas e o fogo, eu teria ido ao encontro deles, com a aprovação do mestre. Tive vontade de descer do dique e abraçá-los mas não o fiz por receio de me queimar. Depois falei:
Políticos Florentinos sob a chuva de brasa - Autor da ilustração desconhecido
- Não repugnância, mas tristeza sinto por vossa condição. É verdade que eu sou da vossa terra. Lá, eu sempre ouvi falar muito bem de vossas obras e de vosso caráter.

- Que longamente possa tua alma continuar a guiar teus membros - disse o mesmo que antes havia falado - e ainda depois, possa tua fama continuar a brilhar, mas dize, cortesia e valor ainda vigoram em nossa terra? Pois Guglielmo Borsiere, que recentemente juntou-se a nós, trouxe notícias que nos causaram imensa tristeza.

- Os novos povos e seu rápido enriquecimento têm estimulado o orgulho e descontrole em ti, Ó Florença! - gritei, e eles se olharam, tomando isso como resposta.

- Se sempre respondes de forma tão clara - falaram todos - feliz de ti quando precisares discursar. Logo, se conseguires sair destas trevas e um dia voltar a rever as estrelas, não deixes de falar de nós aos que ainda vivem!

Depois desfez-se a roda e sumiram os três. Virgílio, então, decidiu que já era hora de partirmos também. Caminhamos e eu o segui até que chegamos a um ponto onde o ruído das águas tornou-se tão intenso que mal podíamos ouvir nossas próprias vozes.

Eu mantinha uma corda enrolada na cintura, que, em uma outra ocasião, pensei em usar para vencer o leopardo na floresta. O mestre a pediu, e eu a desenrolei entregando-a nas suas mãos. Ele a pegou e caminhou até a borda do precipício, de onde a jogou no abismo profundo.

Diante de tal cena eu pensei: "Algo deverá acontecer, pois algum evento o mestre busca com o olhar". Lendo os meus pensamentos, Virgílio me respondeu: 

- O que tua mente espera logo surgirá à tua visão. 

Mal ele havia terminado de falar, eu vi surgir da escuridão, nadando naquele ar denso e escuro, uma grande e estupenda figura que assombraria até os corações mais seguros. Ela já reduzia a sua velocidade e preparava-se para pousar na beira do precipício, estirando suas garras e recolhendo seus pés.

No Canto XVII, veremos Gerión - Espíritos de famílias da alta nobreza
Vicente Almeida
15/03/2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

A DIVINA COMEDIA - INFERNO - CANTO XV - Por Vicente Almeida

Espírito de Brunetto Latini

Nós caminhávamos por uma das margens de pedra. Uma névoa pairava sobre o córrego mantendo o fogo longe dos diques que o separam do areão. A selva já ficara bem para trás - Tão distante que, se eu olhasse para trás, tenho certeza que não mais a veria, foi quando surgiu um grupo de almas beirando o dique e nos fitando. Uma delas me reconheceu e se agarrou ao meu manto, gritando: 
- Que maravilha! 

Eu, logo que senti que um espírito me segurava, olhei para as suas feições queimadas e, apesar de sua face tostada, não pude deixar de reconhecê-lo.

- Sois vós aqui, senhor Brunetto? - perguntei.

- Filho - respondeu ele -, se não te causar desgosto, deixa que Brunetto Latino se afaste de seu grupo e te faça companhia na breve caminhada. 
Brunetto Latini encontra Dante e Virgílio - Ilustração de Gustave Doré
- Se quiserdes, posso sentar aqui convosco - respondi -, se aquele que está comigo não se incomodar.

- Não posso parar. - respondeu - Fui condenado a vagar eternamente. Se um de nós se detiver, terá que permanecer por cem anos, sem poder afastar o fogo que o atormenta. Segue, portanto, e eu te acompanharei, e depois voltarei ao meu bando, que lamenta a sua dor eterna.

Andei ao seu lado, mas não desci do dique. Ele me perguntou o que eu fazia lá naquele vale infernal antes do tempo. Contei-lhe toda a história, desde a floresta escura até a jornada que eu empreendia com Virgílio.

Então ele me fez várias previsões sobre o meu futuro e o de Florença. Disse:

- Por tuas boas ações, a raça maligna te será inimiga. E têm razão, pois entre as frutas podres não convém cultivar o figo. Pelas honras que teu destino te reserva, vão disputar-te ambas as facções, mas que do bode fique longe a erva.

- Minha mente não esquece - respondi - e meu coração se parte, ao lembrar de vossa figura, amável e paterna, que enquanto vivia no mundo, hora após hora, me ensináveis como um homem se faz eterno. - e disse-lhe ainda - Não é nova esta vossa profecia aos meus ouvidos. Eu anotarei e a levarei comigo, junto com outro texto, para que uma mulher (Beatriz) o interprete, se eu a encontrar.

Indaguei sobre o estado dos seus companheiros e se havia alguém conhecido entre eles. Ele me respondeu:

- Eu terei que ser breve, pois meu tempo é curto. Em suma, cada um deles foi prelado, letrado ou de grande fama e por um só pecado teve o desprezo do mundo. Se o meu grupo aqui estivesse, poderia te mostrar, por exemplo, Prisciano e Francesco d'Accorso. Eu conversaria mais, porém, já vejo uma poeira no Areal. Outro grupo se aproxima e com eles eu não posso me misturar. Lembre-se do meu Tesouro, no qual eu ainda vivo. É a única coisa que te peço.

Falou, e saiu correndo pelo deserto como atleta que disputa uma corrida.

No Canto XVI veremos os Espíritos de políticos florentinos.
Vicente Almeida
10/03/2014

quarta-feira, 5 de março de 2014

A DIVINA COMÉDIA - INFERNO - CANTO XIV - Por Vicente Almeida

E estamos de volta em nossa viagem fictício pelo inferno, através do poema "Divina Comédia" de Dante Alighieri.
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Deserto incandescente - Chuva de brasas - Riacho Flegetonte

Antes de partir da selva dos suicidas, a minha compaixão pela alma que tanto amava a nossa Florença me levou a recolher os galhos espalhados e devolvê-los àquele tronco, que agora permanecia calado.

Continuamos a jornada até chegarmos ao lugar onde se separa o terceiro giro do segundo. O lugar era um estéril deserto de areia grossa e quente, cercado pela selva dos suicidas e pelo o rio de sangue. 

Eu vi vários grupos de almas nuas. Todas choravam desesperadamente. Parecia que cada grupo sofria uma pena diferente. Algumas almas permaneciam deitadas de costas no chão quente. Outras reuniam-se acocoradas em pequenos grupos. A grande maioria caminhava sem parar.

Sobre todo o areão caíam brasas quentes, lentamente, como flocos de neve num dia sem vento. As brasas batiam na areia e produziam faíscas que aqueciam o chão arenoso, intensificando a dor dos que ali sofriam. Sem descanso, as almas faziam uma dança rítmica com mãos, tentando, em vão, afastar as chamas que sobre elas caíam.
Deserto com eterna chuva de brasas - Ilustração de Gustave Dore - Século XIX
Neste deserto de areão, estão os violentos que pecaram contra Deus, com blasfêmias e calúnias ultrajantes, os sodomitas e aqueles que pecaram contra a natureza e a arte - explicou o mestre.

- Mestre - perguntei -, quem é aquele que ali está deitado e age como se as brasas não o incomodassem?
Gravura de Blake Dante Hell, ilustrando um dos sete reis que assediaram Tebas
E o vulto, percebendo que dele eu falava, respondeu gritando:

- O que um dia fui quando vivo, continuo a ser, agora, morto! Júpiter pode perder as esperanças de vingança. Nem o raio com o qual ele me atingiu no meu último dia, nem estas brasas que ele agora lança sobre mim farão com que eu lhe dê o prazer de se ver vingado!

- Ó Capâneo, já que tua soberba não diminui, o teu sofrimento só aumenta: nenhum martírio, mais que a tua própria ira, seria melhor punição ao teu orgulho! - gritou Virgílio, e depois me explicou:

- Ele foi rei. Um dos sete que assediaram Tebas. Pelo seu ódio, é condecorado com essas "medalhas" incandescentes que enfeitam seu peito. Agora me acompanha e tem cuidado para não pisar na areia quente, seguindo sempre por este bosque ao lado.

Chegamos a um pequeno riacho, de águas tão vermelhas que me deixaram impressionado. O leito e as margens do rio eram feitas de pedra, e as bolhas liberavam um vapor que extinguiam as chamas que caíam acima e nas proximidades do riacho. Imaginei, portanto, que aquele deveria ser o nosso caminho.

- Entre todas as coisas que te mostrei, não viste nada ainda tão notável quanto este riacho que extingue as chamas que caem sobre ele. - falou o mestre, e eu pedi que ele falasse mais sobre a origem do riacho.

- No meio do mar se encontra um país gasto, que se chama Creta. - explicou Virgilio - Lá existe uma montanha chamada Ida, que, antes fértil e cheia de vida, hoje permanece deserta como coisa velha.

No centro da montanha encontra-se uma grande estatua, que tem suas costas voltadas para Damiata, e seu rosto virado para Roma, que lhe serve de espelho. Sua cabeça é feita do mais puro ouro. De pura prata são seus braços e o peito. É de cobre dali até onde começam as pernas. O resto é todo de ferro exceto o seu pé direito que é de argila, sobre o qual apoia a maior parte do seu peso.

Todas as suas partes, exceto a de ouro, estão podres, rachadas por uma fissura por onde fluem lágrimas que descem até os seus pés, onde elas se unem e cavam uma gruta. Pelas rochas penetram e aqui deságuam, formando o Aqueronte, o Estige e o Flegetonte que, no final, formam o Cócito que ainda veremos adiante.

- Se este riacho ao nosso lado tem sua origem no nosso mundo, porque só agora o vimos? - perguntei.

- Tu sabes que este lugar é redondo - respondeu - e que nós, virando sempre à esquerda e descendo, não demos ainda uma volta completa; muito ainda veremos adiante, então, não fiques surpreso ao encontrar algo que não vistes ainda.

- Onde, mestre, encontraremos o rio Flegetonte e o Letes, que não foi por ti mencionado?

- O Flegetonte - respondeu, - é a fonte deste riacho que agora vês saindo da floresta. É aquele mesmo rio de sangue fervente que atravessamos com o centauro. O Letes tu ainda verás, mas fora deste mundo.

É lá que se banha a alma penitente que, arrependida, da sua culpa se purifica.

Depois ele me chamou: 

- Vem. Está na hora de sairmos deste bosque. Vem pela margem de pedra deste riacho, pois sobre ela o vapor apaga as chamas.
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No Canto XV veremos o Espírito de Brunetto Latini
Vicente Almeida
05/03/2014